Navegando pela internet, eu me deparei com um estudo "AS RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO REPUBLICANO E A ABOLIÇÃO" de autoria de Maria Fernanda Lombardi Fernandes, professora da Universidade Federal de São Paulo.
Nele, a docente traz uma análise sobre como a abolição da escravatura no Brasil tem uma relação direta com a Proclamação da República. E não seria nefasto dizer que a diferença de classes que já era bastante relevante ganhou um impulso importante naquele momento, uma vez que os escravos foram libertados e deixados à própria sorte. Mais do que isso, a formação da República dividiu as classes dominantes. Ou seja, o Brasil de hoje continua sendo o reflexo da nossa história.
A professora explica muito bem esse momento: "De maneira geral, o movimento abolicionista brasileiro não foi marcado pela defesa dos direitos individuais dos escravos. Grosso modo, a defesa da abolição no Brasil apoiou-se em argumentos de outra espécie, baseados na razão nacional usada por José Bonifácio, que dizia ser a escravidão obstáculo à formação de uma verdadeira nação, pois mantinha parcela da população subjugada a outra parcela, como inimigas entre si. Para ele, a escravidão impedia a integração social e política do país e a formação de forças armadas poderosas".
O que Bonifácio não entendia naquele momento é que o caminho para a formação de uma nação deveria necessariamente passar pelos direitos individuais daqueles que foram escravizados.
A música "Da ponte pra cá", dos Racionais Mcs, de 2002, é uma de muitas do grupo que traz uma visão de um homem negro da periferia de São Paulo, seus pensamentos e anseios, que vão ao encontro do resultado de centenas de anos de escravidão. Muito do que é dito nas rimas tem a ver com diferenças entre classes sociais e a vontade do jovem negro da periferia em ascender socialmente. Estas impulsionadas ainda mais pela formação da República.
Vou tentar (me desculpem os historiadores e estudiosos de plantão por qualquer erro) de maneira bastante simples interpretar partes da música sob a ótica social.
A Lua cheia clareia as ruas do Capão
Acima de nós só Deus, humilde né não, né não?
Saúde, plin, mulher e muito som
Vinho branco para todos, um advogado bom
Cof, cof, ah!"
Esse primeiro trecho pode dizer algumas coisas. Ele começa localizando o ouvinte sobre onde a cena toda acontece. O Capão Redondo é um bairro periférico e pobre da Zona Sul de São Paulo. Ele fala que acima deles só Deus. Ou seja, se na concepção deles Deus é uma divindade, nenhum outro homem pode submetê-lo a uma condição inferior. Ele continua: Saúde, plin, mulher e muito som, vinho branco para todos, um advogado bom. Portanto, a miséria não vai prosperar e todos terão acesso aos luxos materiais. Por fim, uma indicação que muitos seguem um caminho perigoso em busca desse luxo.
Playboy bom é chinês, australiano
Fala feio e mora longe e não me chama de mano
E aí, brother, hey, uhul, pau no seu (ai)
Três vezes seu sofredor, eu odeio todos vocês
Vem de artes marciais, que eu vou de Sig Sauer
Quero sua irmã, seu relógio Tag Heuer
Um conto se pá, dá pra catar
Ir para a quebrada e gastar, antes do galo cantar
Um triplex para a coroa é o que malandro quer
Não só desfilar de Nike no pé
Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai
Mas no rolê com nós, cê não vai
Nós aqui, vocês lá, cada um no seu lugar
Entendeu, se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves, não teme
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de Itapecerica
Sai, Deus é mais, vai morrer pra lá zica
Mais do que mostrar que existe uma divisão clara na sociedade atual, aqui eles mostram o desprezo pela elite, ao mesmo tempo que a busca pelo status social é a sua principal motivação. Porém, o clima de tensão está sempre presente.
Não adianta querer, tem que ser, tem que pá
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar
O mundo é diferente da ponte pra cá
Tem que ser, tem que pá
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar
Esse trecho é bastante interessante. O autor afirma que existe uma desigualdade gritante na sociedade brasileira. Neste caso, na cidade de São Paulo. Ou seja, sugere uma união entre os iguais, enquanto os de fora não têm voz. Esse é um reflexo bastante forte da divisão de classes que o Brasil se submeteu mais ainda após a República, juntando diferentes grupos em prol de diferentes interesses.
Ai, ai, ai
Outra vez nóis aqui, vai vendo
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Ei, mulher é mato, a Mary Jane impera
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz na quebrada o equilíbrio ecológico
Que distingue o Judas só no psicológico
Ó, filosofia de fumaça, analise
Cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não, mostra quem?
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos cara bom, no auge se afundaram por fama
E tá tirando dez de Havaiana?
E quem não quer chegar de Honda, preto em banco de couro
E ter a caminhada escrita em letras de ouro?
A mulher mais linda sensual e atraente
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal, verdadeiro
Na vida ou na morte, o mais nobre guerreiro
Aqui sugere um comportamento mais enérgico pautado na injustiça e na reflexão por uma vida melhor. Mostra que existe muito descontentamento entre esta camada mais humilde da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo reforça a força pela busca de algo que nunca foi fácil, mas que é possível alcançar. Também traz uma crítica aqueles que alcançaram algum prestígio social e mudam repentinamente de comportamento.
A música segue nessa topada. Traz muitas outras reflexões. O mais importante é que nos dias atuais, existem pensamentos antagônicos com relação aos direitos do indivíduo na sociedade.
Uma conversa para outra hora. Até mais!!
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